Depois de sair na mídia e nas redes sociais é que a juíza revogou a prisão
O dia 31 de março foi marcado por uma série de denúncias nas redes sociais. Influenciadores digitais, em sua maioria negros, divulgaram o caso de dois irmãos acusados de roubar dois carros em Diadema (SP) e presos pelo crime, que afirmam não ter cometido.
No dia seguinte, Luiz César Marques Júnior, 24, e Gustavo Borges Marques, 19, saíam do CDP (Centro de Detenção Provisória), em cena transmitida ao vivo pelo Instagram. Presos havia um mês, os irmãos receberam habeas corpus menos de 48 horas após o início da mobilização digital.
“Depois de sair na mídia e nas redes sociais é que a juíza revogou a prisão”, afirma Ewerton Carvalho, um dos advogados de defesa, ao avaliar como a internet contribuiu para a soltura dos irmãos.
Em 1ª de março, Luiz, Gustavo e o pai, Luiz César Marques, saíram de casa por volta das 18h em direção a um bar, para comemorarem o aniversário de uma amiga.
Em determinado momento, Gustavo decidiu fumar e atravessou a rua, acompanhado por Luiz. Eles pararam perto de um veículo estacionado. Logo em seguida, uma viatura da polícia chegou e os abordou.
“Para mim não ia dar em nada. Achei que era uma abordagem normal. Eu perguntei para eles [os policiais] o que estava acontecendo com os meus meninos. Eles falaram que o carro era roubado e os garotos eram suspeitos”, relembra o pai. O crime citado envolvia dois veículos, um furtado às 18h40, e outro, às 18h47.
Na sequência, os irmãos foram levados à delegacia. O pai os acompanhou e disse ao delegado que os filhos eram inocentes, que estavam com ele o todo tempo. “O delegado perguntou se tinha como eu provar e eu falei que sim, que tinha um monte de testemunhas”.
No dia seguinte, Marques saiu atrás de provas por conta própria. Ele bateu na porta de estabelecimentos próximos aos locais por onde passaram e pediu as imagens das câmeras de segurança. Em pouco tempo, reuniu filmagens que mostram os três saindo de casa e chegando ao bar.
Segundo uma das advogadas de defesa, que preferiu não ser identificada pela reportagem, foram reunidos 18 vídeos. Quinze deles mostram os rapazes no bar no horário dos roubos.
De acordo com a defesa, em uma das imagens é possível ver um dos carros passando na rua próxima ao bar e sendo estacionado minutos antes da abordagem. O condutor sai do veículo, caminha atrás dos irmãos, tira a camisa e abandona o carro.
Os advogados também alegam que o mais novo, Gustavo, não sabe dirigir. O pai relata que certa vez tentou ensiná-lo, mas ele se confundiu com o comando da ré e acabou batendo em um poste. Desde então, tem trauma da direção.
Apesar das imagens, a defesa não conseguiu uma decisão da Justiça ao longo de um mês. Até que o caso foi parar nas redes sociais e ganhou repercussão.
A rede religiosa que movimentou as redes sociais Diadema, dia 31 de março de 2022, 17h51. O influenciador Roger Cipó publicou o primeiro tuíte após ser contatado pela tia dos rapazes. “Os irmãos Luiz e Gustavo estão presos injustamente. A polícia acusa dois jovens negros pelo roubo de dois carros, na região do ABC paulista, mas imagens mostram que, no momento dos crimes, eles estavam em um bar, com o pai, a 3 km de distância do local”.
A publicação foi compartilhada massivamente no Instagram. O Twitter, que facilita a dispersão de postagens, também levou a manifestação da dançarina e palestrante Bárbara Querino ao feed dos seguidores de Cipó.
Às 22h30 do mesmo dia, ela publicou um fio relembrando sua prisão em 2018. Acusada de ter roubado dois carros e sem saber dirigir, Bárbara tinha características similares à da suspeita, como o cabelo crespo volumoso, o que bastou para que a polícia a procurasse em sua casa dias após o crime.
Na época, amigos e familiares fizeram uma campanha no Facebook. Após cumprir um ano e oito meses de pena, ela foi solta e passou por uma nova audiência, da qual saiu absolvida, em maio de 2020.
Cipó conheceu a história de Bárbara durante a mobilização na rede social, que durou todo o período ao longo do qual ela ficou presa. Os dois fazem parte de um grupo no WhatsApp com a família de Gustavo e Luiz, e tiveram contato com a história dos rapazes por meio do candomblé. O terreiro frequentado pela tia dos dois irmãos já havia sido visitado pelo influenciador para uma série de fotografias feita por ele.
Bárbara também frequenta o candomblé, religião que a acolheu quando saiu da prisão. “Nós, pessoas pretas, se temos uma comunidade com que podemos contar, que não é só unida pela questão da militância, mas também uma comunidade religiosa, [nos fortalecemos]. O que me salvou foi a afro religiosidade”, diz.
As publicações mobilizaram a comunidade negra e religiosa nas redes. Cipó conta que veículos de mídia independente, artistas como Rafael Zulu e Tia Má, e até páginas de fofoca contribuíram para que o caso ganhasse repercussão.
“Eu sabia que minha história seria um ponto-chave para que as pessoas compartilhassem com mais rapidez. Horas depois, essa publicação já estava no Instagram, já tinham pessoas compartilhando e me procurando para ajudar os meninos”, diz Bárbara.
“O papel da influência e das redes sociais é subverter essa ordem. De alguma forma a gente invade. Vai ficar impossível não ver”, afirma Cipó sobre seu propósito na internet. “Uma das questões do Judiciário é que eles utilizam basicamente fatores de conhecimento por características como o cabelo, a altura, a cor”, diz Bárbara.
“Eles eliminaram a palavra ‘racismo’ e colocaram ‘características’. Ou seja, continuam utilizando argumentos racistas”, aponta ela, que idealizou a campanha “Vidas Carcerárias Importam” após sair da prisão.
O advogado Ewerton Carvalho também afirma que os irmãos foram vítimas de racismo. “Estatisticamente falando, nesses casos de reconhecimento facial equivocado, de abordagens policiais equivocadas, a predominância da pele das pessoas é preta”.
Outro ponto que a defesa questiona é o procedimento realizado para o reconhecimento dos irmãos. Os dois foram colocados ao lado de um outro homem de estereótipo diferente do deles – ele era branco e gordo –, o que pode ter influenciado a decisão.
“Quando você pega uma vítima que acabou de sofrer um trauma a coloca na frente do jovem pedindo para ela reconhecer, se o jovem for preto e periférico as chances de ele ser condenado ali mesmo são de 80% ou mais, na minha análise. Este é um recorte que faço com base nos dados que tenho dos meus casos”, afirma Carvalho.
O que diz a Justiça Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que “o caso foi registrado pelo 3º DP de Diadema. Na ocasião, ambos foram reconhecidos pelas vítimas. O inquérito foi concluído e relatado ao Poder Judiciário, não mais retornando à unidade”.
Procurado, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que não se manifesta sobre questões jurisdicionais. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”, afirmou em nota.
O caso, que continua tramitando na Justiça, está com a próxima audiência marcada para o dia 5 de dezembro.