A mudança na legislação foi aprovada no ano passado pelo Congresso Nacional com o voto de oito dos 11 parlamentares do Amazonas
MANAUS – O juiz Diego Oliveira, da 9ª Vara Federal do Amazonas, alegou mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, promovidas em 2021, para rejeitar a ação do MPF (Ministério Público Federal) que buscava responsabilizar o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o ex-secretário de Saúde do Amazonas Marcellus Campêlo pela crise de oxigênio em Manaus.
Na ação, ajuizada em abril de 2021, o MPF pedia a condenação de Pazuello e Campêlo, além dos secretários do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro, Luiz Otávio Duarte e Hélio Angotti Neto, por retardarem o início das ações no estado amazonense, em janeiro do ano passado, quando houve a segunda onda de Covid-19.
O MPF também apontou a falta de controle da demanda e do fornecimento de oxigênio medicinal nos hospitais do Amazonas, a ausência de auxílio do governo federal ao estado no controle de insumos, a demora na transferência de pacientes à espera de leitos para outros estados e a pressão pelo uso do “tratamento precoce” com medicamentos sem comprovação científica.
Em decisão proferida na segunda-feira (9), Diego Oliveira afirmou que, com as mudanças na Lei de Improbidade Administrativa aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro de 2021, houve a extinção do crime de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”, imputado pelo MPF aos denunciados.
De acordo com o magistrado, com a redação antiga da Lei de Improbidade, as condutas de Pazuello e Campêlo teriam atentado contra os princípios da administração pública, configurando atos de improbidade administrativa previstos no art. 11, caput e inciso II da Lei nº 8.429/92, isto é, retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício.
Entretanto, a Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, trouxe nova roupagem ao artigo 11, que teve incisos revogados e modificados e, principalmente, “estabeleceu um rol taxativo das condutas violadoras dos princípios da Administração Pública, quando dispôs que estas seriam caracterizadas por uma das hipóteses elencadas nos respectivos incisos”.
Diego Oliveira sustentou que, agora, não basta que o agente público pratique ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade. A conduta dele deve estar prevista no novo texto, apresentar finalidade de obter proveito indevido, além de ser necessário o apontamento das normas constitucionais violadas.
“No caso em tela, a despeito da ‘extrema gravidade’ dos fatos denunciados pelo MPF, os quais ensejaram comoção nacional; atualmente, as condutas descritas na petição inicial não se amoldam a nenhuma das hipóteses previstas nos incisos artigo 11 da LIA [Lei de Improbidade Administrativa]”, afirma Diego Oliveira.
O magistrado disse, ainda, que não poderia fazer “ativismo judicial” ou adotar interpretações ampliativas” em razão da enorme comoção social provocada pela crise de oxigênio. “Boa ou ruim, a nova lei de improbidade administrativa foi democraticamente concebida pelo Poder Legislativo e ratificada pelo Poder Executivo, por meio da sanção presidencial”, disse o juiz.
Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, a nova Lei de Improbidade foi aprovada no Congresso Nacional em outubro do ano passado com apoio de sete parlamentares do Amazonas. O deputado Sidney Leite (PSD) e o senador Plínio Valério (PSDB) votaram contra, e o senador Eduardo Braga (MDB) não participou da votação.
Em junho de 2021, antes de o projeto de lei ser aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o ATUAL publicou reportagem mostrando que a proposta de mudança na Lei de Improbidade oferecia proteção quase total para gestores públicos suspeitos do crime e tornaria mais rígidas as penalidades contra investigadores.
À época, o presidente da AAMP (Associação Amazonense do Ministério Público), promotor Alessandro Gouveia, disse que as mudanças na lei dificultariam a apuração em casos de corrupção. Ele citou possibilidade de o investigado, não sendo considerado culpado, poder entrar na justiça contra o Ministério Público alegando danos contra si na apuração.
A entidade contestou a proposta de mudança no artigo 11 da Lei de Improbidade, que excluiu a previsão do caráter exemplificativo dos incisos. Originalmente, o artigo citava como improbidade “qualquer ação ou omissão” que violasse os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade. Agora, descreve as condutas exatas que são improbidade.
A nova lei também também revogou os incisos I e II, que previam a responsabilização por improbidade de atos “visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência” ou de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”. Foi essa revogação que resultou na rejeição da ação contra Pazuello e Campêlo.
Lei benéfica
Ao usar a nova Lei de Improbidade para rejeitar a ação contra Pazuello e Campêlo, que foi apresentada antes da aprovação da nova norma, Diego Oliveira sustentou que, por força da aplicação do Direito Administrativo Sancionador, “deverão ser observados os preceitos do garantismo punitivo, dentre eles, a aplicação da retroatividade da lei mais benéfica.
Esse princípio, segundo o juiz, já foi usado em decisões do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Em decisão proferida no RMS 37.031/SP, a 1ª Turma decidiu que “o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no artigo 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador”.
O magistrado alegou, ainda, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), promulgada internamente pelo Decreto n. 678/92, considera a retroatividade da norma mais benéfica como sendo um princípio geral do Direito Sancionador, e não apenas do Direito Penal/Processual Penal.
“Logo, as alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021 [nova Lei de Improbidade] que restringem o jus puniendi [direito de punir] do Estado devem ser aplicadas às ações de improbidade administrativa ajuizadas antes de sua vigência”, afirmou Diego Oliveira, ao rejeitar a ação contra Pazuello e Campêlo.
Revogação de punição
No Amazonas, as mudanças na Lei de Improbidade Administrativa estão sendo usadas para pedir a revogação de restrições impostas em sentenças proferidas antes da aprovação das novas regras. É o caso do ex-prefeito de Coari Adail Pinheiro, que recorreu ao TJAM (Tribunal de Justiça do Amazonas) para recuperar o direito de votar e ser votado neste ano.
Na ação, o advogado Fabrício Parente cita as mudanças na Lei de Improbidade Administrativa ao sustentar que, pela regra em vigência, o caso de Adail Pinheiro não é mais atingido pela pena de suspensão de direitos políticos. A defesa do ex-prefeito quer que a Justiça aplique o novo texto de forma retroativa para restabelecer os direitos políticos dele.
“A pretensão ora deduzida se restringe, apenas e tão somente, à condenação de suspensão de direitos políticos pelo prazo de três anos imposta ao autor, resguardando-se ao direito de discorrer em outra oportunidade, dentro do prazo decadencial de dois anos, sobre as demais penas aplicadas”, afirma Fabrício Parente.
A ação que resultou na condenação de Adail Pinheiro por improbidade administrativa foi apresentada pelo MP-AM (Ministério Público do Amazonas) no ano de 2013. A promotora de Justiça Sarah Clarissa Cruz Leão apurou que o ex-prefeito contratou, sem concurso público, um homem para o cargo de vigia por seis anos, entre setembro de 2001 e julho de 2007.
Em junho de 2018, o juiz André Luiz Muquy, da 2ª Vara da Comarca de Coari, condenou o ex-prefeito por improbidade administrativa e determinou, entre outras punições, a suspensão dos direitos políticos dele por três anos, contados a partir do momento em que o processo transitasse em julgado (sem mais recursos).
A defesa de Adail Pinheiro recorreu ao TJAM, mas em julho de 2020 o desembargador João Simões rejeitou o pedido e a ação contra o ex-prefeito transitou em julgado em outubro daquele ano. A partir daquele momento, passou a contar o prazo de suspensão dos direitos políticos dele, com finalização em outubro de 2023.
Na última quarta-feira (4), o desembargador Jomar Fernandes, do TJAM, rejeitou o pedido de Adail Pinheiro sob alegação de que “a retroatividade dos dispositivos da nova legislação, ora defendida pelo Autor, ainda é objeto de debate, tanto em sede doutrinária, quanto no âmbito dos Tribunais”.
“À luz dos princípios constitucionais do direito sancionador, da jurisprudência dos Tribunais Superiores e das discussões travadas durante a tramitação parlamentar, discute-se se – e em que medida – a nova Lei pode alcançar acusações ou condenações por atos de improbidade anteriores à sua entrada em vigor”, afirmou Fernandes.
O desembargador lembrou que, em fevereiro deste ano, o STF (Supremo Tribunal Federal), reconheceu a repercussão geral do debate relativo à “definição de eventual (ir) retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021″. A decisão do colegiado vinculará os casos que tramitam em todos os Tribunais do país.
Jomar Fernandes alegou, ainda, que o texto da Súmula 343 do STF, estabelece que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Para ele, é o caso da ação do ex-prefeito de Coari.