FOTOS: Divulgação/DPE-AMAlto Rio Negro, Amazonas: 23 povos indígenas, 16 línguas, fronteira com Venezuela e Colômbia. Um desafio: garantir o acesso da população à Justiça na cidade mais indígena do Brasil e arredores. Para vencer as barreiras de comunicação e em respeito à diversidade de culturas da região, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) no Polo do Alto Rio Negro, com sede em São Gabriel da Cachoeira, conta com dois intérpretes indígenas, estagiários e servidores que falam línguas dos povos originários.Polo tem sede em São Gabriel da Cachoeira, onde se concentram 23 povos indígenas que falam 16 línguas diferentes
Nesta terça-feira, 9 de agosto, é comemorado o Dia Internacional dos Povos Indígenas e o acesso à Justiça para essa população passa pelo desafio de vencer a barreira das línguas. A data foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1994, para homenagear e reconhecer as tradições dos povos indígenas e promover a conscientização sobre a inclusão dos povos originários na sociedade, alertando sobre direitos e reafirmando as garantias previstas na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
O atendimento conta com falantes de tukano, baniwa, nheengatu, curipaco, hupdah e até espanhol, por conta de venezuelanos e colombianos que também buscam os serviços da DPE-AM.
Sofia contou com a tradução feita pela estagiária do polo da DPE-AM, Daniele Rosana Prado, que também atua como intérprete, para ajudar uma amiga de infância a obter seu registro de nascimento. Ela disse que ficou contente com o resultado do atendimento.
“Quando cheguei e vi que tinha pessoas que trabalham aqui falando a minha língua, dando ‘bom dia’ e falando ‘seja bem-vinda’ na minha língua, fiquei muito feliz. Me senti bem acolhida e não tive medo”, disse a aposentada Sofia Álvares Dias, de 70 anos, falando em tukano. Sofia, que é do povo Tukano, conta que se sente mais à vontade para se expressar na língua materna, porque nem sempre consegue fazer as perguntas que precisa em português.
Complexidade nos atendimentos
A defensora pública Isabela Sales, coordenadora do Polo do Alto Rio Negro, explica que identificou-se a necessidade de intérpretes desde o início do funcionamento desta unidade da Defensoria. O polo foi inaugurado em setembro de 2021 e, de lá até agora, já realizou 3.486 atendimentos, sendo 2.500 (71,7%) para pessoas indígenas.
“É muito importante que outros órgãos, como prefeituras e até bancos, possam ter intérpretes, porque às vezes ficamos sem ter como agir nesses locais. E é muito importante também para preservar a nossa cultura, porque quando a gente fala a nossa língua, a gente preserva e nunca esquece”, afirmou Sofia em tukano traduzido por Daniele.
As principais demandas dos indígenas que buscam atendimento da Defensoria em São Gabriel têm sido as relacionadas a registros públicos, como falta de certidões de nascimento e de óbito, afirmam as defensoras.
“Por isso fechamos parceria com a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira para a cessão de servidores falantes em línguas indígenas. Contamos com dois servidores que atuam exclusivamente como intérpretes, mas também temos duas estagiárias que auxiliam nas traduções. Ao todo, temos sete colaboradores indígenas no polo, incluindo a Darci, que é concursada”, explica a defensora. Darci Gama Firmo, nascida em São Gabriel da Cachoeira, é analista jurídica, advogada e a primeira servidora indígena concursada da Defensoria. O polo conta ainda com mais uma defensora pública, Danielle Mascarenhas.
De acordo com o intérprete, quando os assistidos se autodeclaram como indígenas, no início do atendimento, é perguntado a língua que preferem que seja falada durante o atendimento e estes se mostram muito felizes quando percebem que quem vai atendê-los fala a mesma língua.
Trabalho de intérprete
Ronaldo Rafael Antônio, 32, é um dos intérpretes da Defensoria. Ele é do povo Baniwa e, além da sua língua materna, auxilia na tradução das línguas curipacu e nheengatu. De acordo com ele, a língua mais comum entre os indígenas que procuram os serviços da Defensoria é o tukano, seguido do baniwa, curipaco e nheengatu.
“Antes, o pessoal das comunidades não conseguia ter acesso à Justiça, tinham que pagar advogado, que custa caro e, agora, graças à Defensoria, eles conseguem gratuitamente”, acrescenta Ronaldo, com a experiência de quem vivenciou a dificuldade de não entender o português, quando deixou sua comunidade para estudar em São Gabriel da Cachoeira. “Foi muito difícil, pensei em desistir”, afirma. Hoje, Ronaldo cursa Administração.
“É muito importante ter os intérpretes aqui na Defensoria. A gente percebe que as pessoas se sentem mais encorajadas a explicar melhor o seu problema, a buscar a Justiça e lutar por seus direitos, ou resolver seus problemas na forma da lei. Onde não tem intérprete, as pessoas não vão, porque têm medo de não serem ouvidas”, avalia.
De acordo com a defensora Isabela Sales, foi firmada uma parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), organização não governamental brasileira que atua na defesa de direitos dos povos indígenas do Brasil, e a Defensoria conta também com o apoio de um intérprete da língua hupdah, povo que tem buscado com frequência o atendimento da Defensoria.
FOTOS: Divulgação/DPE-AMCidade Multilíngue
Em São Gabriel da Cachoeira, uma lei municipal instituiu três línguas indígenas como cooficiais – nheengatu, baniwa e tukano – e há ainda uma proposta de lei para incluir o Yanomami. Mas com a presença de 23 povos na região, a diversidade vai muito além e, por essa razão, o polo da Defensoria tem buscado mais parcerias para ampliar o serviço de intérpretes.
Além das parcerias já firmadas, a Defensoria está mapeando possíveis parceiros para passar a contar com um intérprete de Yanomami.
Outra parceria é com a Rede de Comunicadores Indígenas Wayuri, onde a Defensoria participa do Programa Papo da Maloca para prestar educação em direitos e informar sobre temas de atuação do Polo do Alto Rio Negro. O programa vai ao ar todas às quartas-feiras, às 10h30, compartilhando as informações com a cidade e comunidades vizinhas. Nas localidades onde as ondas de rádio não chegam, o programa é transformado em uma espécie de minipodcast, distribuído via WhatsApp e plataformas de streaming.
“Somos dependentes do serviço dos intérpretes, mas vemos também como uma obrigação nossa porque, sem a tradução, as pessoas não conseguem ter acesso aos serviços. Estamos sempre pensando em como melhorar. A língua é uma forma de manter a cultura viva e é importante que os indígenas se sintam à vontade para se expressar”, afirma a defensora Isabela Sales.
A barreira da comunicação é uma questão fundamental para o acesso dos indígenas à Justiça e à garantia de seus direitos. Tanto que, no dia 29 de abril deste ano, o polo da DPE-AM recebeu a visita de membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foram a São Gabriel da Cachoeira para o lançamento de cartazes sobre audiência de custódia traduzidos para línguas indígenas e para a divulgação da Resolução do CNJ 287, que trata dos direitos de pessoas indígenas.
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